sexta-feira, 11 de maio de 2012

O SER E O TER


Dias atrás, estava no carro esperando o farol abrir. Um mendigo atravessou a rua na minha frente, o andar cansado, arrastando os pés. De repente percebi como esses habitantes espectrais da paisagem urbana passam despercebidos diante dos olhos de grande parte da população. A maioria das vezes o que chama a atenção é o seu mau cheiro que convida o transeunte a torcer o nariz e apressar o passo.

Naquele momento porém quis olhar para aquele mendigo de uma outra maneira, não mais como um elemento anônimo da paisagem urbana e sim como um ”ser” humano. Sua magreza extrema me chamou a atenção. Tentei por um momento me colocar no seu lugar: imaginar o que seria passar despercebido, sentir aquele extremo desamparo, viver a mais radical privação do “ter”. Percebi então o quanto o ter condiciona o nosso “ser”.

Por sermos seres que habitam um corpo, o nosso ser não pode prescindir do ter. A primeira posse é o nosso próprio corpo, a nossa porta de entrada para o mundo dos objetos concretos. Não podemos prescindir do ter, porque o nosso ser é um ser corpóreo. Isto comporta que nos relacionemos com “objetos” que pertencem ao mundo externo. A apropriação desses objetos responde de alguma forma a uma continuação do nosso ser no corpo.

Desta relação primordial com o nosso corpo brotam algumas necessidades que nos levam a ter uma casa, roupa para vestir, comida para comer, condições para nos locomover, etc. Por mais que nos identifiquemos com a proposta da pobreza franciscana, não podemos prescindir do ter. Existe de fato uma profunda ligação entre o nosso Eu profundo e os objetos dos quais nos apropriamos no mundo externo. Eles são continuações do nosso Eu, podem ser expressões de suas formas, tornando-se assim “objetos cintilantes”, extensões do nosso ser.

Privar o ser humano de toda posse, é uma extrema violência que tende a privá-lo de alguma forma de si mesmo. Foi essa a terrível experiência dos prisioneiros dos campos de concentração nazistas e stalinistas. Eles deixaram de ter um nome e passaram a ser identificados apenas com um número.
Paradoxalmente essa privação pode acontecer por falta da possibilidade de ter, como no caso do mendigo, ou por uma inflação do ter, como no caso de muitos que se acham “bem de vida”, mas que, como o mendigo, foram privados de si mesmos.
A sociedade do consumo nos leva de fato a viver essa privação, ao ”impor” a necessidade de ter “objetos” que não são expressão do nosso Eu profundo e sim da necessidade do próprio Mercado de vender produtos. Para que isso seja possível a Propaganda precisa insuflar “necessidades” que não são filtradas pelo nosso sEu, mas que se tornam promessas de “criar” um Eu, ali onde ele está oculto ou enfraquecido.

Quanto menor for o contato com esse núcleo central da nossa personalidade, o Eu profundo de onde flui o “ser”, mais o humano fica exposto à sedução de substitutos, máscaras de personalidade que são vendidas nas prateleiras dos supermercados.

Trata-se da promessa do Mercado que nos garante mediante a posse de um produto de ter o acesso ao cortejo dos “bem-sucedidos”, dos que venceram, dos que “fazem diferença”, dos que “marcam”. Trata-se contudo de mascaras intercambiáveis, pois precisam ser trocadas com extrema frequência, para que não fiquemos “por fora”, desatualizados, empurrados para as margens do cortejo dos bem-sucedidos.

Roberto Girola

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