Frágil
embarcação é uma metáfora apropriada para designar a travessia do ser
humano e da humanidade em seu conjunto, desde o nascimento até a morte.
Do berço ao túmulo, em meio a tempestades e turbulências, vamos cruzando
onda após onda, sem saber ao certo o que nos espera no porto. As
estrelas podem nos guiar, quem sabe algum farol ajude a acertar o rumo
do horizonte, mas na maioria das vezes é às cegas que prosseguimos na
navegação. A fragilidade da embarcação se revela em diversos níveis e
instâncias.
A Pessoa
Em termos
pessoais, quando concentramos o olhar sobre o próprio coração nos
deparamos com um feixe de medos e dúvidas, de perguntas sem resposta e
enfermidades sem remédio, de incoerências e contradições, de ruídos e
paixões desordenadas. É o terreno das "alegrias e esperanças, das
angústias e tristezas”, lembra a abertura da Gaudium et Spes, já que
estamos celebrando o Jubileu de Ouro do Concílio Ecumênico Vaticano II. Perturbações e sonhos se mesclam, lutas resultam em fracassos ou vitórias, que vão se alternando ao longo da estrada.
O
espírito navega em águas turvas, onde se vê impulsionado por desejos
inconfessados e inconfessáveis, quando não simplesmente ignorados e
desconhecidos. "Faço o que não quero e deixo de fazer o que me propus”,
reconhece o apóstolo Paulo, que convive, além do mais, com o "espinho na
carne”. "Coração de gente é terra selvagem”, diz com razão o poeta Guimarães Rosa. Nesse
nível, o ser humano não passa de um ponto de interrogação itinerante,
numa busca sem fim pelo sentido profundo de sua existência. Um caniço
agitado, batido por ventos contrários, embora seja sempre "um caniço que
pensa” (Voltaire).
Conclui-se sem muito esforço que o
indivíduo é, sim, uma frágil embarcação. Na sua trajetória existencial,
mares bravios, ignotos "e nunca dantes navegados” (Camões) o inquietam,
ameaçam e atemorizam. O mundo não deixa de ser um imenso oceano de
ondas, perigos e fantasmas que, desde a mais longínqua antiguidade,
mantém o ser humano numa atitude de vigilância e defesa. É aqui que se faz necessário descobrir o oceano infinito do amor de Deus.
Quando
colocamos nosso pequeno barquinho nas águas se sua infinita
misericórdia, os temores e tremores se convertem em coragem e confiança.
Pode o Mestre estar dormindo, como o relato do Evangelho, mas
está no barco e não o deixará afundar. Mais ainda, tem o poder de
aplacar o furor da tempestade (Lc 8,22-25). Aliás, o sono tranquilo do
Filho em meio ao mar agitado não será, para nós, o sinal mais forte de
que a embarcação encontra-se segura nas mãos do Pai! Que podem as forças
do mal diante do Criador?
Como reza o salmista, "só em
Deus a minha alma tem repouso, porque dele é que me vem a salvação; só
ele é meu rochedo e salvação, a fortaleza onde encontro segurança” (Sl
61). Ou ainda: "O Senhor é minha luz e salvação, de quem terei medo?
O Senhor é a fortaleza de minha vida. Frente a quem tremerei?” (Sl 27). Edith Stein traduz semelhante entrega com uma simplicidade e transparência admiráveis:
"sei que sou sustentada, e nisso tenho serenidade e segurança – não a
segurança autoconsciente do homem que está no chão firme por força
própria, mas a segurança doce e feliz de uma criança carregada por
braços fortes – uma segurança que é, objetivamente falando, não menos
racional. Ou seria "racional" a criança viver permanentemente
no temor de que sua mãe a possa deixar?” (Cfr. STEIN, Edith. Na força da
cruz, coleção "clássicos da espiritualidade”, Ed. Cidade Nova, São
Paulo, 2008).
A Família
Se deslocarmos o
olhar da esfera pessoal para a esfera familiar, a tormenta em geral
ganha uma magnitude mais perturbadora. Basta entrar no interior da casa
de grande parte das famílias, ou de nosso próprio lar. Desemprego,
doença, discórdia, gritos, violência – eis o oxigênio que se respira em
não poucas delas. Nos dias de hoje, grande parte das famílias habitam
não um lar, mas uma pensão. Cada um tem sua vida própria, aparecendo e
desaparecendo para comer e dormir, numa prática individualista levado à
potência extrema. Os apelos da mídia, especialmente de certos programas
permissivos, ou de uma propaganda repetitiva e estridente, são furacões
que rugem furiosamente em nossas portas e janelas. E nem adianta fechar
portas e janelas!
Os apelos do marketing e da publicidade chegam
pela TV, pelo computador, pelo celular e por toda essa parafernália da
tecnologia de ponta. Nada contra as inovações tecnológicas. O mal é que
os meios que foram inventados para aproximar as pessoas através da
comunicação, acabam por separá-las. Multiplicam-se os laços virtuais e à
distância em detrimento das relações primárias, familiares e de
proximidade, cara a cara, olho no olho. Na concepção de Zygmunt Baumann,
as relações sólidas, construídas lenta e laboriosamente, vão se
derretendo. A "sociedade líquida”, com seus laços superficiais e
descartáveis, toma o lugar dos contratos duradouros.
Isto para
sequer falar das famílias devastadas pelo álcool, pelas drogas e por uma
violência contínua. Aí as palavras se convertem em flechas que ferem e
matam, enquanto o próprio silêncio não passa de um mutismo. Este é
desértico, solitário, marcado pelo constrangimento, onde vigora a recusa
da comunicação, ao passo que o verdadeiro silêncio é povoado, sereno e
repousante. O mutismo é um monólogo que destila veneno e reprimida
agressividade, cria abismos incomunicáveis; o silêncio, ao contrário, se
reveste de profunda alegria, permitindo um diálogo mudo mas fértil e
fecundo como a água da fonte.
Igual violência, que também destrói
e desestrutura a convivência familiar, é o consumismo. Nunca houve
tanto acesso aos utensílios de bem-estar e, ao mesmo tempo, nunca este
foi tão raro. Pois as coisas do cotidiano, quando elevadas à condição de
ídolos, murcham e matam o calor humano. De que adiantam dormitórios
requintados de conforto, se lhes falta a intimidade do amor? De que
servem salas ultramodernas e sofisticadas se nelas as visitas se sentem
estranhas? De que adiantam cozinhas equipadas com o que há de mais
avançado tecnologicamente, se o tempero do carinho não for a raiz e o
fundamento da mesa, da partilha do pão e da vida? De que adiantam
computadores, televisores e carros de última geração, se eles se
interpõem entre os próprios familiares como objetos de adoração,
descartando a possibilidade de uma convivência sadia e sólida?
Também
no caso da família, a embarcação se revela muito frágil. Algumas à
beira do abismo, ou, o que é pior, da indiferença. Nas águas turbulentas
do mundo moderno e pós-moderno, a dupla de pilotos – pai e mãe –
dificilmente logra manter firme o leme entre as mãos. Quantas casas
navegam à deriva das ideias e ideologias mais obscuras e nocivas!
Quantos desencontros dentro de um ambiente que deveria ser marcado pelo
encontro! Novamente aqui, as ondas tempestuosas ameaçam mergulhar a casa
no fundo do mar. A fragilidade do lar só encontrará verdadeira
calmaria quando orientar seu barquinho para o lago cheio de luz e
repousante do amor divino. Ali, no aconchego da fé e da esperança, a
tormenta se relativiza e se reduz a proporções administráveis. Não, a
tormenta não desaparecerá. A oração, a meditação e a contemplação não
modificam nossos problemas pessoais ou familiares. Modificam,
isso sim, nossa atitude diante deles. O medo e o desconforto são
substituídos pela certeza de que Deus é o primeiro capitão do barco. O
leme pode estar em nossas mãos, mas é Ele que ilumina e conduz pelo
caminho da salvação.
A Sociedade
Mas as
coisas se tornam bem mais complexas quando o mesmo olhar que percorreu o
âmbito individual e familiar atinge a esfera da economia, da política,
da cultura e da sociedade em seu conjunto. Neste nível, as ondas e as
tormentas se tornam incomparavelmente mais ameaçadoras.
Na
voracidade com que a economia de mercado se globaliza e atinge todos os
povos e nações, o próprio Planeta Terra se converte numa frágil
embarcação. Catástrofes de ordem gigantesca, naturais e/ou provocadas
pela ação do modelo político-econômico vigente, ameaçam submergi-lo no
caos primitivo. O ser humano, particularmente a partir da revolução
industrial, informática e tecnológica, desencadeou uma máquina de
produzir/consumir que hoje espaça de todo controle.
Países
inteiros e pessoas são atropelados por uma vertiginosa avalanche de
novidades, modismos e objetos. O globo terrestre não suporta semelhante
ritmo de exploração de seus recursos naturais. Devastação,
desertificação, poluição do ar e das águas, aquecimento global – são
algumas das expressões que denotam a grande enfermidade que debilita o
planeta. A vida em todas as suas formas –a biodiversidade– está em jogo.
Cada espécie em extinção, fauna ou flora, diminui progressivamente a qualidade de vida sobre a face da terra.
Na
esfera socioeconômica e político-cultural, as coisas não são
diferentes. Os desequilíbrios e assimetrias entre regiões, países e
grupos constituem um verdadeiro terremoto estrutural, seguido de um
tsunami de ondas humanas que se deslocam em todas as direções. Ondas
visíveis que, simultaneamente, escondem e revelam transformações
obscuras nas correntes subterrâneas.
Povos, línguas, bandeiras, moedas e costumes se misturam e se confundem por todos os lados.
Os
deslocamentos humanos de massa, em princípio, são oportunidades que se
abrem a pessoas, famílias e grupos inteiros. Também podem engendrar
novos valores, na medida em que entrelaçam expressões culturais e se
enriquecem mutuamente. Muitos, no entanto, são marcados pela violência e
pela fuga, gerando massas e massas de refugiados em permanente
diáspora. Errantes que, ao mesmo tempo, figuram como termômetros das
mudanças em curso e profetas de uma nova civilização: justa e fraterna,
solidária e sustentável.
São variadas e de variada força as ondas
que se batem contra a convivência pacífica da humanidade. Que o digam
as tensões e conflitos, guerras frias ou quentes, genocídios,
neocolonialismo, desigualdades sociais, holocaustos e violência de todo
gênero. O resultado é o desenraizamento de muitas pessoas, famílias e
povos, migrantes em itinerância, onde a fome e a sede, a dor e a solidão
costumam ser as únicas companheiras. Quatro irmãs siamesas que não
podem esperar e exigem uma ação imediata de governos, entidades,
igrejas, organizações não governamentais, cientistas, movimentos
sociais...
Nesta imensa e ao mesmo tempo frágil embarcação que é o
Planeta Terra, vale retornar novamente à espiritualidade de Edith
Stein. Mulher que soube unir o próprio sofrimento e morte no campo de
concentração nazista Auschwistz à cruz de Cristo.
Filósofa e
mística, judia de nascimento e cristã por conversão, insistia que "a
religião é raiz e fundamento de toda vida”. À pergunta de "como se pode
começar a viver nas mãos do Senhor”, respondia com absoluta convicção:
"Fica tranquilamente na igreja todo o tempo de que necessitas para
encontrar serenidade e paz. Isso faz um bem enorme não somente a ti, mas
também ao trabalho e a todas as pessoas com quem tens de lidar”. Com a
alma serena apesar da consciência do que a esperava, concluía: "minha
vida recomeça a cada manhã e termina a cada noite”.
Em
tempos de gigantescas tempestades para o povo judeu, Edith Stein foi
capaz de colocar sua frágil embarcação, como também a frágil embarcação
de toda a vida humana, no infinito oceano de amor que é a misericórdia
de Deus.
Digamo-lo com suas próprias palavras, transformando-as no ponto final desta reflexão: "existe uma vocação ao sofrimento de Cristo e, por meio deste, uma vocação a colaborar com sua obra de redenção.
Digamo-lo com suas próprias palavras, transformando-as no ponto final desta reflexão: "existe uma vocação ao sofrimento de Cristo e, por meio deste, uma vocação a colaborar com sua obra de redenção.
Quando
estamos unidos com o Senhor, somos membros do Corpo Místico de Cristo:
Cristo continua vivendo em seus membros e continua sofrendo neles. Esse
sofrimento, suportado em união com o Senhor, é o sofrimento Dele
aplicado na grande obra redentora e que, nesta, se torna fecunda.
Trata-se de um pensamento fundamental de toda a vida religiosa” .
Trata-se de um pensamento fundamental de toda a vida religiosa” .
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