terça-feira, 25 de novembro de 2008

PERDIDA A UNIDADE DA IGREJA?

No Credo professamos: Credo unam sanctam catholicam et apostolicam Ecclesiam. Sim, a Igreja de Cristo é una, santa, católica e apostólica, e os grandes tratados de eclesiologia têm procurado comentar essas quatro notas, uma a uma. Na verdade, não pode faltar à Igreja nenhuma dessas notas sem que sua essência mesma seja destruída. Mas a Igreja, conforme a promessa do Senhor (cf. Mt 16), não pode ser destruída[1], o que significa que as notas que a constituem hão de permanecer para sempre.
Infelizmente, porém, aparecem, aqui e ali, certos teólogos que se prontificam a deturpar ou mesmo negar uma ou mais das referidas notas, o que os coloca fora do âmbito da fé divina e católica. As heresias sempre existiram ao longo da história da Igreja, e já nos tempos apostólicos temos testemunhos de que não estiveram ausentes. Entretanto, guiada pelo Espírito prometido por Jesus, a Igreja as venceu todas, iluminando com a luz da Verdade as mentes de todos os que se submetem ao doce domínio de Cristo e condenando com clareza os impiedosos erros a respeito do desígnio salvífico de Deus.
Nos últimos tempos, contudo, criou-se um novo clima na vida da Igreja, ninguém poderá negá-lo. Infelizmente, muitos na Igreja, inclusive alguns pastores de almas, já não mostram o zelo necessário no combate ao erro e na promoção da Verdade. Tal postura tem facilitado enormemente a difusão de heresias e de distorções da doutrina entre os fiéis.
Nesse sentido, deparei-me recentemente com um texto de um conhecido teólogo brasileiro[2], texto que nega abertamente uma das notas essenciais da Igreja, a sua unidade e conseqüente unicidade. Quando professamos Credo unam Ecclesiam, estamos afirmando que a Igreja de Cristo não está dividida em várias igrejas ou denominações cristãs, e que, portanto, ela é una e única. Mas vamos ao texto que nega a unidade da Igreja; eis o que está dito expressamente:
A Igreja de Cristo aparece na história como um espelho quebrado em muitos pedaços. Em cada um deles se reflete algo do mistério da Igreja. Mas não conseguimos em cada pedaço divisar, no tempo da peregrinação, o mistério na sua totalidade. Esse passo é graça de Deus que não merecemos, mas que devemos buscar a cada dia, na fidelidade ao Espírito do Senhor, para retomar o caminho da unidade perdida (o negrito é meu).[3]
E ainda:
O importante é que todos nos disponhamos a aprender o caminho das "realizações deficientes" da Igreja de Cristo em cada uma de nossas igrejas em direção ao projeto de Deus, para que o Espírito Santo, em sua ação eficaz, possa recompor o 'espelho quebrado' numa unidade articulada (o negrito é meu).
Vejamos bem o teor dessas afirmações. Está dito que: a) a Igreja una de Cristo não existe no tempo presente; b) as diversas igrejas refletem, cada qual a seu modo, algo do mistério da Igreja una, mas nunca mostram a Igreja em sua integralidade; c) a Igreja una, que ainda não existe, deve ser, sob a ação do Espírito, objeto de nossa busca.
Ora, todas e cada uma dessas afirmações estão em contradição aberta com o autorizado ensinamento da Igreja católica. É de fé divina e católica a doutrina segundo a qual a Igreja de Cristo já existe neste mundo em sua unidade e integralidade (enriquecida de todos os meios necessários à salvação), e que ela se identifica com a Igreja católica entregue a Pedro e a seus sucessores, embora fora de seus quadros visíveis haja elementa Ecclesiae, de modo que resulta absurda a afirmação de que a Igreja de Cristo é ainda um sonho a se realizar no futuro através de uma espécie de articulação de todas as igrejas hoje existentes.
Pio XI, em 1928, já condenava a absurda opinião apresentada por nosso teólogo. Veja as palavras pontifícias sobre os hereges de antanho, que parecem ter sido mesmo escritas justamente para combater as descabidas idéias acima referidas:
Pois opinam: a unidade de fé e de regime, distintivo da verdadeira e única Igreja de Cristo, quase nunca existiu até hoje e nem hoje existe; que ela pode, sem dúvida, ser desejada e talvez realizar-se alguma vez, por uma inclinação comum das vontades; mas que, entrementes, deve existir apenas uma fictícia unidade.
Acrescentam que a Igreja é, por si mesma, por natureza, dividida em partes, isto é, que ela consta de muitas igreja ou comunidades particulares, as quais, ainda separadas, embora possuam alguns capítulos comuns de doutrina, discordam todavia nos demais. Que cada uma delas possui os mesmos direitos, que, no máximo, a Igreja foi única e una, da época apostólica até os primeiros concílios ecumênicos.
Assim, dizem, é necessário colocar de lado e afastar as controvérsias e as antiqüíssimas variedades de sentenças que até hoje impedem a unidade do nome cristão e, quanto às outras doutrinas, elaborar e propor uma certa lei comum de crer, em cuja profissão de fé todos se conheçam e se sintam como irmãos, pois, se as múltiplas igrejas e comunidades forem unidas por um certo pacto, existiria já a condição para que os progressos da impiedade fossem futuramente impedidos de modo sólido e frutuoso.[4]
Ora, é fato que, ao longo de 2000 anos de história do Cristianismo, houve inúmeras divisões. Muitos grupos se separaram da Igreja católica, constituindo comunidades permanentes, que, inclusive, reclamam para si a autêntica herança de Cristo. O caso mais patente de divisão, tanto pelo fato de estar mais próximo de nós como pelas suas conseqüências de maior amplitude e atualidade, foi a Reforma Protestante, ocorrida no séc. XVI.
Entretanto cabe-nos uma pergunta: Com as divisões, a Igreja perdeu sua unidade, ficou também dividida? Muitos pretendem que sim; a Igreja teria, depois das divisões, perdido sua unidade. Essa é a tese defendida pelo teólogo a que nos referimos. A Igreja una ter-se-ia cindido em muitas partes como um espelho quebrado em muitos pedaços, de modo que cada parte do espelho - cada denominação cristã, inclusive a Igreja católica - já não poderia sozinho refletir a totalidade da imagem, isto é, do mistério da Igreja.
A Igreja católica, a bom título, não concorda com essa posição. A doutrina católica sempre sustentou que a unidade, da qual a Igreja foi dotada por vontade divina, tem subsistido e subsistirá para sempre. Mesmo as divisões ocorridas ao longo da história do Cristianismo não a destruíram e jamais poderão fazê-lo. A unidade, com todas e cada uma das notas essenciais da Igreja, permanece para sempre, pois é o Senhor que guia e sustenta a sua obra.
O Concílio do Vaticano II reafirmou a doutrina tradicional segundo a qual a Igreja de Cristo perdura ao longo da história e realiza, já neste mundo, a nota da unidade. A Constituição Lumem gentium, ao falar sobre a Igreja de Cristo, ensina:
Esta Igreja, constituída e organizada neste mundo como sociedade, subsiste na Igreja católica, governada pelo sucessor de Pedro e pelos Bispos em união com ele, embora, fora da sua comunidade, se encontrem muitos elementos de santificação e de verdade, os quais, por serem dons pertencentes à Igreja de Cristo, impelem para a unidade católica.[5]
Esse texto, ao declarar que a Igreja de Cristo existe neste mundo como sociedade visível subsistente na Igreja católica entregue a Pedro e a seus sucessores, afirma que unidade e unicidade da Igreja também existem atualmente, pois que a Igreja de Cristo é una e única. O texto conciliar rejeita toda afirmação que pretenda sustentar que a Igreja una e única é uma realidade ainda a ser construída no futuro, ou que se dará somente na escatologia. A Igreja de Cristo já existe atualmente provida de todos os elementos necessários à salvação.
Verdade é que o concílio não usou o verbo "ser" (est) para falar da identificação da Igreja de Cristo com a Igreja católica, mas preferiu a expressão "subsistir em" (subsistit in). Muitos, a partir disso, pretenderam que o concílio tivesse abrido mão da identificação da Igreja de Cristo com a católica, e até sustentaram que a Igreja de Cristo pudesse subsistir também em comunidades eclesiais não-católicas. Mas assim se interpreta mal o Concílio. O Concílio não mudou a doutrina sobre a Igreja, nem poderia fazê-lo, mas tão somente a aprofundou, realçando-lhe certos aspectos. Se usou a expressão subsistit in(subsiste em) em vez do verbo est (é) para falar da relação entre a noção de Igreja de Cristo e de Igreja católica confiada a Pedro, não foi com a intenção de negar a identificação entre ambas, mas de, professando firmemente a doutrina tradicional, abrir-se ao reconhecimento de que fora dos quadros visíveis da mesma Igreja católica há verdadeiros elementos eclesiais, embora não em sua plenitude.
Em outras palavras, há uma única subsistência da verdadeira Igreja de Cristo. A unicidade da Igreja o exige. Mas fora dessa única subsistência visível não há o vazio eclesial; há elementos da verdadeira Igreja fora da Igreja católica, em maior ou menor número conforme a Comunidade eclesial, elementos esses que, por pertencerem à Igreja de Cristo subsistente na Igreja católica, impelem à unidade católica (cf. LG 8).
Recentemente, Bento XVI, ao discursar para os membros da Sagrada Congregação para a Doutrina da Fé, fez questão de enfatizar a indefectibilidade da Igreja nos seguintes termos:
Em particular a Congregação para a Doutrina da Fé publicou no ano passado dois Documentos importantes, que ofereceram alguns esclarecimentos doutrinais sobre aspectos fundamentais da doutrina sobre a Igreja e sobre a Evangelização. São esclarecimentos necessários para o desenvolvimento correto do diálogo ecumênico e do diálogo com as religiões e culturas do mundo. O primeiro Documento tem o título "Respostas a questões relativas a alguns aspectos sobre a doutrina da Igreja" e repropõe também nas formulações e na linguagem os ensinamentos do Concílio Vaticano II, em plena continuidade com a doutrina da Tradição católica. Deste modo é confirmado que a Igreja de Cristo, una e única, tem a sua subsistência, permanência e estabilidade na Igreja Católica e que por conseguinte a unidade, a indivisibilidade e a indestrutibilidade da Igreja de Cristo não são anuladas pelas separações e divisões dos cristãos. Paralelamente a este esclarecimento doutrinal fundamental, o Documento repropõe o uso lingüístico correto de certas expressões eclesiológicas, que correm o risco de ser mal compreendidas, e chama para esta finalidade a atenção sobre a diferença que ainda permanece entre as diversas Confissões cristãs em relação à compreensão do ser Igreja, em sentido propriamente teológico (o negrito é meu).[6]
Desse modo, fica evidenciado que o ensinamento autorizado da Igreja, sustentado pela Tradição, é o de que a Igreja de Cristo, malgrado todas as divisões que se deram no interior do Cristianismo, não está dividida neste mundo em muitos pedaços, como sugere o texto do teólogo que citamos, mas subsiste (perdura integralmente, em sua unidade e unicidade) na Igreja católica governada pelo sucessor do Apóstolo Pedro, o Papa. A permanência da Igreja neste mundo em sua integralidade é dom do Senhor, que devemos humildemente reconhecer. Isso não significa, porém, que não devamos trabalhar para que os batizados em sua totalidade, atualmente divididos, estejam um dia em plena comunhão pela mesma fé, mesmos sacramentos e mesmo governo. Não significa também que a Igreja já mostre neste mundo todo o seu esplendor, o que fica reservado para a escatologia.

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