O coração e a alma livre
Quando parei por um instante hoje pela manhã pensei sobre a necessidade de ter o coração e alma livre, no mesmo instante me lembrei das primeiras páginas de O Coração: uma análise da afetividade humana e divina, de Dietrich von Hildebrand, onde ele descreve algo que mexe profundamente com quem lê com sinceridade: o coração é o centro vivo da pessoa, o lugar onde o afeto se torna linguagem, onde a resposta ao valor se torna chama e onde a vida moral encontra sua verdadeira altura. Ele afirma que os afetos não são impulsos cegos, mas movimentos conscientes da alma diante daquilo que reconhece como valioso. Enquanto lia, eu percebia que a verdadeira liberdade interior começa exatamente ali, onde o coração deixa de ser um campo de impulsos dispersos e passa a ser um santuário ordenado pelo Bem. É impossível não lembrar da súplica do salmista: "criai em mim um coração que seja puro dai-me de novo um espírito decidido" (Sl 51,10), porque só um coração assim pode ser livre para amar de modo verdadeiro.
A partir dessa luz inicial, torna-se impossível separar afetividade de liberdade espiritual. O coração livre é aquele que responde ao valor com reverência; a alma livre é aquela que se deixa moldar pelo que é verdadeiro e grande. Hildebrand deixa claro que os afetos são parte essencial da dignidade humana. Eles expressam aquilo que a pessoa realmente ama. E quando os afetos são purificados, a liberdade floresce. Paulo recorda que onde está o Espírito do Senhor, aí está a liberdade (2 Cor 3,17). É nesse espaço interior tocado pelo Espírito que os afetos se ordenam e o coração reencontra sua rota.
Santo Agostinho aprofunda esse mistério ao recordar que o afeto é o movimento mais íntimo do coração em direção ao que ele ama: "Amor meus pondus meum" - O meu amor é meu peso. Ele diz que o amor é o peso que nos move, e que o coração só repousa quando encontra o Sumo Bem. Os Evangelhos confirmam isso quando Jesus afirma que onde está o teu tesouro, aí estará também o teu coração (Mt 6,21). É a forma divina de expressar que o afeto revela o destino interior da alma. Se o coração se prende ao que é pequeno, o homem se reduz; se se volta ao eterno, ele se eleva. A liberdade interior é a cura do amor ferido e o retorno do afeto ao seu lugar natural. Na tradição bíblica e agostiniana, o afeto nunca é neutro; ele é sempre resposta e direção.
Santo Tomás ilumina ainda mais quando afirma que as paixões, integradas pela razão iluminada pela fé, tornam-se forças de ascensão. Deus nos deu essa vida afetiva para que pudéssemos alegrar-nos com a verdade e sofrer pelo injusto, como os profetas que, movidos por um coração inflamado, não se calavam diante do mal. O próprio Jesus, ao chorar diante do túmulo de Lázaro (Jo 11,35), mostra que a afetividade não diminui a santidade; ela a torna mais plena e mais profundamente humana. A liberdade não é ausência de afeto, mas afeto educado, disciplinado e fortalecido pela virtude.
Hildebrand insiste que o coração é o órgão da profundidade. Ele mostra que os afetos não apenas acompanham a vida espiritual, mas a revelam. Quando o coração se deixa transformar pelo bem, ele se torna capaz de amar com precisão e entrega. Os afetos deixam de ser tempestades confusas e se tornam ventos que conduzem a alma para Deus. É impossível não recordar a promessa de Ezequiel: "Eu vos darei um coração novo e um espírito novo porei em vosso seio" (36,26). É a imagem perfeita da transformação afetiva pela graça.
E aqui entra o mistério mais belo. A graça toca o afeto por dentro, reorganiza o que o pecado dispersou, cura feridas antigas, acalma ansiedades e recolhe o coração dividido. O Espírito Santo, que é amor derramado em nossos corações (Rm 5,5), devolve ao homem a capacidade de desejar o bem com sinceridade. Ele afina a sensibilidade para os valores eternos, purifica o olhar e faz o amor reencontrar seu eixo. A liberdade espiritual é uma obra da graça na afetividade humana. É o afeto iluminado, purificado, direcionado para Deus.
O coração e a alma livre tocam, sim, os afetos. Tocam, iluminam, curam e transfiguram. Uma alma pacificada já não teme o que sente, porque seus afetos se tornaram território de Deus. É uma alma que ama sem se perder, que sente sem ser arrastada, que deseja sem possuir, que serve sem se cansar. É a liberdade dos filhos de Deus que Paulo descreve ao falar da criação que aguarda a revelação dos filhos livres (Rm 8,21). A liberdade verdadeira não elimina o afeto; ela o devolve ao seu lugar sagrado. E quando isso acontece, nasce no homem uma paz profunda e uma alegria firme, sinal discreto de que o Espírito tocou o coração e o fez novo.
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