A crise do homem contemporâneo tem suas raízes mais profundas no amor próprio desordenado. Esse amor, ao invés de ser reflexo da legítima estima de si como criatura de Deus, torna-se fechamento egoísta, idolatria de si mesmo e rejeição da transcendência. A tradição espiritual cristã, conforme recorda Dom Chautard em A alma de todo apostolado, ensina que a verdadeira fecundidade da vida humana e apostólica depende da vida interior, ou seja, da relação de amor com Deus que purifica o coração e ordena os afetos. Quando o homem volta-se unicamente para si, interrompe esse fluxo vital.
No entanto, a modernidade, ao exaltar o indivíduo como medida de todas as coisas, substituiu a interioridade pela autoafirmação. O amor próprio tornou-se uma forma de autossuficiência: o homem moderno busca a felicidade fora de Deus e, ao fazê-lo, perde o sentido de si mesmo. Pe. William Faber, em seu livro o Progresso na Vida Espiritual, alerta que o amor próprio é uma das maiores contradições da vida espiritual, pois o homem “exagera o pouco que faz” e busca sinais ilusórios de seu próprio progresso. Essa busca de autojustificação gera angústia, vaidade e comparação - sintomas visíveis na cultura atual, marcada por exibicionismo, ansiedade e culto da imagem.
O amor próprio, quando desordenado, transforma o centro do homem em um ídolo. Pe. José Tissot, seguindo São Francisco de Sales em A Arte de Aproveitar-se das Próprias Faltas, observa que as paixões humanas, quando não são dominadas, “devastam e aniquilam o jardim da alma”. A alma, criada para amar a Deus e os outros, adoece quando volta o amor para si de modo absoluto. Essa enfermidade se manifesta hoje na busca desenfreada de prazer, sucesso e reconhecimento. Poderia encerar aqui sintetizando, o homem contemporâneo quer ser o criador de si mesmo, negando os limites da criatura.
O resultado é uma civilização tecnicamente poderosa, mas espiritualmente vazia. Trazendo aqui também o pensamento do Frei Maria-Eugênio do Menino Jesus, em Quero ver a Deus, recorda que o homem foi criado para participar da vida divina e que “a alma caminha passo a passo com o passo de Deus”. O afastamento desse caminhar gera a solidão existencial moderna, na qual o homem, incapaz de contemplar, vive disperso, fragmentado entre estímulos e desejos contraditórios. A ausência de silêncio interior impede a escuta da voz divina e, consequentemente, a compreensão de si mesmo.
Padre A. D’Almeida Morais Júnior, em Filosofia da Liberdade, identifica nessa alienação o drama filosófico e moral do século: o homem moderno, reduzido à matéria e ao instinto, perde a liberdade verdadeira, que é a capacidade de orientar-se para o bem. “Ele é também matéria, mas a matéria unida à luz”, afirma o autor, indicando que a dignidade humana está no espírito que busca o absoluto. Quando o homem rompe essa relação, transforma a liberdade em capricho e a autonomia em prisão.
A crise contemporânea, portanto, é essencialmente uma crise de amor, parece até estranho, pois nunca tanto se falou e escreveu sobre este assunto, mas o x da questão está porque o homem ama-se de modo errado. Como ensina São Bernardo, “a ordem do amor é amar as coisas como devem ser amadas”: Deus sobre todas, o próximo como a si mesmo e a si mesmo por amor a Deus. O amor próprio legítimo nasce da consciência de ser amado por Deus; o desordenado nasce da soberba. Somente o retorno à interioridade e à vida de graça poderá curar o homem dessa doença do ego, devolvendo-lhe a liberdade do coração. Assim, a civilização reencontrará o sentido de pessoa e de comunidade, quando o amor de si for purificado pelo amor de Deus.
Obras citadas:
CHAUTARD, D. Jean-Baptiste. A alma de todo apostolado. Petrópolis: Vozes.
TISSOT, Pe. José. A arte de aproveitar-se das próprias faltas. Trad. segundo São Francisco de Sales.
FABER, Pe. William. Progresso na vida espiritual. Petrópolis: Vozes.
MARIA-EUGÊNIO DO MENINO JESUS, Frei. Quero ver a Deus. Petrópolis: Vozes, 2018.
MORAIS JÚNIOR, P. A. D’Almeida. Filosofia da Liberdade. Pet
rópolis: Vozes, 1947.
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